domingo, 30 de outubro de 2011

A gaveta

Eis que encontro uma gaveta a encarar-me do profundo de seu ser esvaziado.
Fitava-me com o olhar quente às minhas costas e, como aquietei-me por tamanha obsessão, prestou-se a ficar quieta lá, muito bem sentada em minha cama, como assim a havia posto.
Que é? perguntei-lhe, já de saco cheio. Ela nada me respondeu. Mirava-me um interior há muito tempo vazio, cheirando a guardado. Ficamos em um silêncio perturbador, daqueles estilo chuva-rua de pedra- cigarros. O pior que nem frio estava, nenhuma brisa infeliz a saltitar janela a dentro para quebrar o gelo. Então ficamos assim, um de frente para o outro, ela  a querer dizer-me em indiretas coisas que não conseguia entender e eu, cercado de raiva e hostilidade, nada também lhe dizia.
Serra e martelo na mão, com o suado corpo erguido por sobre ela, mesmo assim, a gaveta não se deixava intimidar.

Você não me pertence, também não te quero.

Ela permaneceu frígida. Ocupa um canto no meu guarda roupas só por aluguel, não faça essa cara de quem está com raiva por eu estar lhe cancelando o contrato. Senti-a virar a cara, e virei a minha também. Meus olhos caíram onde antes era a sua morada, um lugar que lhe cabia perfeitamente. Suspirei. Ora, não fique assim! Fique feliz por eu não lhe jogar pela janela.
Ela me ignorou, com ares de arrogância.
Peguei-lhe pelas extremidades de cerejeira e a sacudi. É isso que você quer?! Pois suma de uma vez! Ou vou jogar-lhe por inteiro! Ela titubeou em meus braços e quase caiu. Rejeitava-me.
Senti sua fragilidade desagarrada.
Foi para na ponta da cama, sentei-me onde antes estava ela. Serra e martelo no chão.
Diga-me, sim? De que me adianta uma gaveta vazia no guarda-roupas? Não me respondeu, ficamos a encarar o chão sujo de poeira e serragem. Outro suspiro, uma brisa aventurou-se para dentro.

Tá bem.

Ajudei a se erguer e a coloquei de volta em seu lugar. Mas não venha esperar que coloque coisas em seu interior. Ela acomodou-se entre seus milímetros. Parecia conformada em ser só gaveta. Conformei-me eu também que aquele lugar lhe pertencia, no mínimo por usucapião.