quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Vargtimmen

Ácido demais para ser meu primeiro Bergman - esse comentário é extremamente necessário para o começo dessa crítica. É como levar um soco no meio da cara no primeiro segundo da luta. Muito embora eu creia que não há como não levar vários socos na cara ao longo dos 84 minutos da película: perturbador, a melhor maneira - e a mais sucinta - de descrever A hora do Lobo. 
O filme conta a história de Johan ( Max von Sydow ) e sua mulher Alma ( Liv Ullmann ) que se mudam para uma ilha deserta em busca de inspiração para suas telas. Na ilha eles são atormentados por suas próprias angústias materializadas em fantasmas que moram no lugar.


 Logo de cara somos apresentados à realidade daquilo ser apenas um filme, já quando passam os créditos no começo é possível escutar a própria equipe de Bergman fazendo os preparativos do set de filmagem, quando, de fato, a câmera começa a rodar conhecemos os olhos grandes e profundos que vão nos guiar na próxima hora pelo lusco-fusco da madrugada: Alma aparece e senta-se, falando diretamente com o expectador. Comenta sobre o marido, recusa-se a sair daquela casa na ilha e lembra-se que ele dizia que gostava dela pelo seu silêncio. Alma está grávida e guarda em si mais do que um bebê, a essência total do seu marido. Ela desenvolve-se como figura de esposa e mãe de Johan, em uma relação distante e perturbadora, sempre tentando alcança-lo concluindo já nos minutos finais da película, que ao passar muito tempo com uma pessoa você acaba tornando-se um pouco dela e seus pensamentos são os mesmos. Assim, no decorrer da trama, somos guiados por Alma à loucura do marido e mergulhamo-nos mesmos à imensidão bruxelante de Bergman. 
É perceptível a loucura de Johan desde o princípio, mas ela é canalizada e controlada por ele através da pintura. É quando a pintura o desaponta, ou quando não consegue fazer direito o seu trabalho que tem crises de insonia e aterroriza-se como personagens que vem lhe perseguir: uma senhora que se tirar o chapéu perde o rosto, um homem que ele julga ser homossexual e uma espécie de homem pássaro que é de todos o pior. Depois disso suas noites de insônia ficam cada vez mais constantes e os planos longos ajudam a transparecer a tormenta da chamada hora do lobo "A Hora do Lobo é a hora que antecede o lusco-fusco da madrugada. É a hora em que a maioria das pessoas morre, quando o sono é mais profundo e os pesadelos piores. É a hora em que o insone é perseguido por suas piores angustias, quando os fantasmas e os demônios são mais impressionantes.A Hora do Lobo é também a hora em que a maioria das crianças nasce." (Bergman,1973).
De início a Hora do Lobo não parece ter tanta importância para a trama, mas o cume da loucura de Johan acontece justamente nela.
 Em uma manhã de sol Alma encontra-se com um dos 'perseguidores' de seu marido, a senhora do chapéu, que lhe revela sobre os planos de Johan e seu diário guardado no fundo de uma maleta preta. A partir de então começa um entrelaçado entre realidade e ficção na película, o que são lembranças de Johan (seu encontro com o barão dono da ilha, sua lembrança de uma antiga amante, Verônica, que faz constantes menções a perseguições 'o fim está próximo'  e um incidente quando esbofeteia o homossexual. ). A trama, então, é mantida em plano geral de forma quase onírica. Podemos notar uma arritmia metafórica no passo de como se desenvolve as lembranças de Johan, observando que, muitas vezes, suas lembranças são produtos de seus próprios devaneios.


O casal é convidado pelo barão a jantar em seu castelo do outro lado da ilha. Esse jantar marca a reviravolta no filme. Lá são lhe apresentados os personagens da sua loucura: A Baronesa von Merkes se coloca como uma figura psicótica, sempre aguçando e instigando a loucura de Johan, a mãe do barão é proposta como um alter-ego sexual, Ernst  transforma-se no alter ego da culpa, um ser angustiado que vive a comentar de suas desgraças e a culpar-se por tudo de ruim que acontece, Heerbrand assume um papel de contestação, trazendo diante de Johan suas angústias e esbofeteando-lhe com seu próprio ser despedaçado. 
Já no caminho de volta Alma coloca em cheque o seu relacionamento com o marido, dizendo que não vai abandona-lo, mas, ao mesmo tempo, pedindo algo em troca desta fidelidade. Johan vê que Alma chora só por ela, não sendo mais um núcleo adjunto a seu próprio, cujas ações e silêncio são para o seu próprio proveito. E, após se rejeitado duas ou três vezes, põe-se fora do campo onde estão, abandonando Alma a chamar por ele. 
Johan, então, confronta-se com a realidade estilhaçada de seu ser e tomado por um desejo de morte confessa a Alma seu encontro com uma criança perto do mar. Desenrola-se, então, a cena mais perturbadora do filme, cheio de trocas entre planos gerais, médios e até mesmo closes. Seguido de uma trilha sonora típica do suspense, a criança observa um inquieto Johan e rouba-lhe algo dos sapatos. Quando o pintor perceber o furto confronta a criança e machuca-o em demasia. Quase inconsciente, a criança faz ainda uma última investida que provoca a fúria de Johan, que termina assassinando-o com pedradas e jogando seu corpo no mar. O menino representa um alter-ego do pintor, sua inocência e ligação com a realidade, talvez uma memória distante do eu que lhe persegue e atormenta. Johan o joga no mar, atira-lhe as profundezas daquilo que é inconstante e escuro. 
É aí então que Heerbrand rompe a casa, seu útero de proteção imagético, e convide-lhe a ir ao castelo, informando que sua antiga amante, Verônica, está lá. Também lhe deixa uma arma e sai com a rapidez que chegou. Johan ameaça Alma com a arma, que sai correndo, mesmo assim o marido lhe disfere três tiros, fazendo com que Alma se finja de morta. Parte, então em uma busca por sua amada no castelo, encontrando com todos os personagens dos quais tem medo e que fazem parte do seu ser. Deixa ser guiado por esses seres, pinta-se de sexo  e corre em busca de Verônica, para encontra-la morta e nua em uma cama. O plano detalhe volta para mostrar o vigor de sua mão sobre o corpo da amada que termina por acorda-la de seu sono eterno numa mistura de loucura e tesão. Johan percebe, então, que é observado por todos os seus fantasmas e Verônica tenta mante-lo na ilusão, tampando-lhe os olhos e gritando 'Não olhe, não lhes dê atenção'.
Alma, que estava escondida a espera do amado, rompe em sua busca e acha-o no meio da floresta, lamacenta, escura e fria, longe o útero protetor da casa, sendo violentado pelos seus próprios fantasmas, em um suicídio assistido, perdendo os sentidos e entregando-se a loucura de seu ser.  A cena é cortada para o diálogo de Alma com o expectador. Ela se pergunta o que poderia feito diferente para salvar Johan "Quero dizer que se eu o tivesse amado menos e não tivesse me importado tanto com aquilo que o rodeava, eu teria podido protegê-lo melhor, neste caso? Ou será que o que me fez ficar com ciúmes foi que eu não o amava o suficiente?" (BERGMAN, 1973, p.109)
Colocando o próprio expectador em seu lugar, com suas vivências oníricas ou não, em cheque de nossas experiências de/sobre amor e loucura. Afinal, quando amamos muito uma pessoa e passamos muito tempo com ela acabamos por nos tornar um pouco dela e ela um pouco de nós. 



referências MUDANÇA PSÍQUICA E NARRATIVA NA PEÇA "A HORA DO LOBO", DE
BERGMAN. por Rita Aparecida Romaro